Gosto de espreitar o teu sono de criança, à noite, quando dormes alheio a tudo, e eu fico a ouvir a tua respiração e a alisar os teus cabelos. Às vezes, chego a pensar que é um desperdício ir dormir, em lugar de ficar a ver-te dormir, porque o tempo voa e em breve já não serás criança.
Nestas noites, como diz a lei, tenho-te à minha «guarda», o que é um prazer insubstituível e a que alguns chamam direitos e outros chamam deveres. Gosto de acordar de manhã, quando, ainda antes do despertador tocar, oiço o som do Canal Panda na sala, e fico a saber que tu já acordaste e que segues à risca o ritual estabelecido, e que a seguir irás fazer o teu pequeno-almoço e vestires-te para a escola.
Mas, apesar disso, gosto de te recomendar que faças tudo isso e não te esqueças de lavar os dentes, sabendo que não te esqueces mas também gostas de ouvir-me dizer-to, porque essa é uma forma de saberes que te «guardo». Saímos de casa deixando para trás o desalinho do teu quarto, a desarrumação vivida das tuas coisas, esses sinais indesmentíveis da tua presença, sem os quais a casa não faz sentido e o silêncio pesa como dor escondida.
És sempre tu quem carrega no botão do elevador, quem acende as luzes da garagem, numa atenção emergente para a rotina das coisas, que é a forma como vais entrando na manhã. E segues num silêncio atento no banco de trás do carro, que interrompes às vezes com alguma pergunta que te ocorre de repente. Vais chegado para a frente, uma mão pousada nas costas do meu banco, como se quisesses prolongar os últimos instantes de proximidade física. Infelizmente, é tão curto o trajecto, que chego a desejar uma camioneta a descarregar na rua que nos atrase uns minutos antes que a manhã nos separe.
E embora eu saiba que não há carros à vista quando tu atravessas a rua para a porta da escola, vou contigo de mão dada, para que sintas ou para que eu finja para comigo mesmo que continuo a guardar-te até que a porta nos separe e outros fiquem contigo. Porque há sempre uma porta que se fecha e que nos separa, ao contrário da casa, onde a porta do teu quarto e a do meu estão sempre abertas. Há sempre esta porta que se fecha sobre ti, outros que te falam e te escutam, enquanto eu caminho na tua ausência e na lembrança da tua voz, outros que sabem de ti o que eu ignoro, outros que por vezes se cansam de ti enquanto eu só te espero, outros que te vêem e te tocam enquanto eu olho as tuas fotografias espalhadas pela minha vida.
Tão perto e tão longe de ti. Tão fundo e tão 70 ausente. Tantas esperanças, tantos projectos, tantos planos. Tantos enganos. Tantos anos, tantos danos. Fecho os olhos e sonho. Tu caminhas comigo, de mão dada, num campo onde não há mais ninguém, e procuramos musgo e pinhas. Há uma gruta num pequeno bosque de que eu finjo não conseguir nunca encontrar a entrada sem ti. É o nosso segredo e lá estamos protegidos do mundo e dos seus males e perigos. Entro por aí contigo. Adormeço e para sempre viverei contigo nesta gruta. E és tu então que me proteges.
(A todos os pais que não se demitiram de o ser e que gostariam de acordar todas as manhãs com os seus filhos e vê-los adormecer todas as noites e não podem. A todos os machos-homem, vagueando por casas vazias sem ninguém a quem guardar, sem ninguém a quem proteger, sem função útil, nestes tempos em que não há tempo a perder).
Autor: Miguel Sousa Tavares
Livro: “Não te deixarei morrer, David Crockett”