Cotidiano

Efeito Colateral

Aos cinqüenta anos, sem qualquer renda e, apesar disso, voltando a morar sozinho, eu penso em como, há muito, eu já deveria ter resolvido meu sonho infantil de independência. Porém, preciso levar em conta que uma doença me acometeu um ano após eu haver me formado e provocou uma sequela em uma das áreas que mais afeta carreiras em dança. Entretanto, ela não foi grande, e não poderia explicar vinte anos de subvida.

Tampouco ilustraria o fato de eu ter que assistir os colegas da minha geração constituindo família, avançando na carreira e adquirindo mais responsabilidades em todas as esferas da vida, enquanto eu tinha que me contentar em cumprir uma longa sentença de prisão domiciliar em uma chácara afastada de tudo e de todos, e por um crime que eu nem sei qual foi.

Ah, também tive que tentar trabalhar com coisas que não me diziam muito e tentar esquecer ou, pelo menos, não valorizar tanto, os trinta anos de uma vida pregressa, com seus sonhos e investimentos (afetivos e financeiros).

O fato é que eu fiz tudo isso, se não alegremente, pelo menos conformado. Apesar disso, essa atitude não me rendeu nada além de um pré-estresse, um computador velho e quebrado, nenhuma renda, além de dias de ociosidade e a sensação de desperdício. A impossibilidade de constituir minha própria família, caso eu quisesse, anos de carência uma vez que um relacionamento afetivo e sexual ficou bastante comprometido, foram outros “lucros”. E, acima de tudo, críticas, como as de que eu não tive que me contentar com nada, pois tudo teria sido uma questão de escolhas pessoais e minha “dificuldade” pra viver já existia muito antes da cirurgia.

Talvez as críticas procedam, mesmo que eu tenha tentado vários tipos de trabalho em inúmeras cidades e que eu sempre tenha feito muita coisa sem que isso jamais tenha sido considerado trabalho. Mas, enfim, esse é o destino dos artistas, que por passarem a vida a cantar, podem morrer de fome e frio, como a Dona Baratinha, mesmo que a vida da formiga trabalhadora tenha ficado mais suportável exatamente por causa da cantoria da vizinha.

Eu tenho pra mim que a cirurgia apenas marcou o início de uma fase imensamente pior do que ela mesma; que se a culpa é das estrelas e se eu não tenho mesmo nenhum talento para as coisas práticas da vida, teria sido melhor que as estrelas tivessem me levado. Pelo menos, o sofrimento teria durado bem menos.

Autor: Roger C. Migliorini

Natthalia Paccola

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  • Nathália, eu estava bem amargurado neste dia, mas acho que a eterna felicidade facebookeana e contemporânea é totalmente falsa. Por iso acho que a gente tem que encarar as dores, sejam em que âmbito forem, de frente. Com certeza foi isso que me motivou a escrever esse texto. Obrigado por postá-lo aqui, no seu face e no meu.

  • Que texto triste este que vc colocou..
    Mas tomo a liberdade de colocar um pedacinho da minha historia.
    Aos 51 anos larguei marido e um casamento de 30 anos.
    Sem renda, resolvi estudar, não para enriquecer,porque isto não importa mai,realização pessoal é oque quero.
    Confesso que as vezes me entristeço com o tempo que passou
    sem ter feito nada por mim.Mas garanto que nunca fui tão feliz como estou sendo agora. Sempre há tempo de recomeçar....

  • É incrivel, o convite à reflexão sobre nossa própria trajetória de vida, contido no relato de alguém que compartilha sua história, como fez Rogério, nesse texto.

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Natthalia Paccola

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