Muitas pessoas dizem querer mudar, mas é só da boca para fora. Algumas se satisfazem em pensar e falar que “todo o mundo tem defeitos; eu também tenho os meus” como se isso as desobrigassem de batalhar para deixar de tê-los. A verdade é que as mudanças exigem grande determinação e disciplina, além de que o usual é que a pessoa tenha que passar por um período de privações ou de algum tipo de sofrimento e renúncia.
Os que desenvolveram certas fobias, medos irracionais que as impedem de andar em elevadores, aviões, transitar por estradas lotadas sem saídas colaterais, ir a eventos públicos onde há muita gente etc. certamente desejam se livrar delas. O entendimento das razões que as levaram a desenvolver esses medos não será suficiente para que se livrem deles: terão que enfrentá-los! Terão que passar pela difícil experiência de vivenciá-los, condição em que serão capazes de perceber que suas forças são maiores que os medos. Isso aumenta muito a autoestima daqueles que aceitam se submeter a esse sofrimento, de modo que costumam ocorrer vários outros avanços e benefícios pessoais derivados da vivência bem sucedida.
Muitas compulsões e vícios são difíceis de serem abandonados, uma vez que produzem importantes ganhos. No caso das compulsões, os benefícios costumam estar associados à redução da ansiedade e não raramente se acompanham de malefícios de monta. Os que desenvolveram o hábito de roer as unhas experimentam alívio da ansiedade ao repetir compulsivamente esse ritual em situações mais nervosas. O mesmo vale para os que aliviam suas tensões com chocolates ou outros alimentos em quantidade desnecessária. Nesse segundo caso, os malefícios são maiores e óbvios: engordam e isso os deprimem, o que gera uma tensão que pede mais alimentos. Os círculos viciosos são fáceis de serem diagnosticados e dificílimos de serem abandonados. Só mesmo graças a um claro entendimento e ao uso de todo o seu vigor intelectual que uma pessoa será capaz de superar esses hábitos arraigados e que pavimentam roteiros estáveis em nosso sistema nervoso, roteiros esses que tendem a se repetir com facilidade em qualquer momento de distração.
Se é dificílimo se livrar das compulsões, o que dizer dos vícios, processos em que os benefícios são intensos no curto prazo e os prejuízos só aparecerão mais adiante? Renunciar a um prazer imediato em benefício de um futuro melhor é propriedade típica das criaturas mais amadurecidas. Elas são capazes de obstinar e parar de fumar cigarros, de usar bebidas alcoólicas caso percebam que estão se prejudicando com isso; o mesmo vale para o uso de outras drogas, dos jogos de azar, do consumismo compulsivo etc.
Não é nada fácil aprender a dizer “não” mesmo quando esse é o melhor procedimento em todos os sentidos: para proteger os direitos legítimos de quem nega, para impedir o oportunismo de algum interlocutor, para educar os filhos dentro de limites que se considere os mais adequados. Se recusar a dar ou a fazer algo que desagrada ou trará malefícios a quem recebe é dever das pessoas do bem; porém, muitas são as que, por pena ou culpa, têm dificuldade em agir assim mesmo quando sabem de seu equívoco. Isso nos mostra mais uma de nossas facetas: temos divisões internas, partes que agem de acordo com determinados padrões e outras que, caso fossem majoritárias, agiriam de forma diferente. Parece mesmo que somos dotados de dois níveis diferentes de consciência, uma mais respeitadora dos valores oficiais da cultura e outra mais voltada para nossas mais íntimas e sinceras convicções. Não é raro que uma dessas consciências também seja fortemente influenciada por emoções, como as que já citei até aqui, quais sejam, o medo, a piedade, a culpa, além desses mecanismos neurológicos que tendem a perpetuar comportamentos que nem sempre estão em concordância com o que é melhor para nosso futuro.
É difícil para o generoso deixar de dar tanto e aprender a receber na mesma medida; é mais difícil ainda o egoísta conseguir crescer e se tornar autossuficiente, condição necessária para que possa abandonar as posturas através das quais precisa receber mais do que dá. É difícil para um homem superar suas dificuldades sexuais, especialmente porque a preocupação com o próprio desempenho acaba por gerar uma ansiedade associada ao encontro erótico, de modo que o que poderia ser extremamente agradável pode se tornar algo tormentoso. E assim por diante.
Tudo é difícil, mas possível. Tudo depende da força e determinação de quem efetivamente deseja se modificar. Quase sempre convém lançar mão de recursos terapêuticos disponíveis para aqueles que, menos arrogantes, aceitam receber a ajuda de quem conhece melhor os roteiros a serem percorridos no processo de se livrar das dificuldades que não são parte inevitável de nossa maneira de ser.
Autor: Flavio Gikovate
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Arrogância mesmo foi a psicanálise ter assumido a autoridade de tratar os homossexuais como doentes durante quase um século, que o diga a Associação Americana.